Não é só “gosto”, é preconceito! Por William de Lucca
Mais um texto inteligente do meu amigo jornalista William De Lucca, autor do Dez razões para NÃO aprovar o Casamento Gay no Brasil, o post mais comentado do Pitadas
Não precisa andar muito pela internet para ver gente justificando todo tipo de restrição afetiva com a desculpa mais antiga para o tal: “gosto”.
Não gostam de preto. Não ficam com gordo. Não toleram homem afeminado. Não curtem gente com deficiência. Não se relacionam com pessoas mais velhas. Não querem papo com pobre. Tudo muito bem publicizado para evitar o stress de ter de conversar com alguém que venha a fazer parte desses grupos insólitos e intragáveis. Mas não é preconceito, é “gosto”.
Não precisa ir muito longe pra perceber que esta ‘naturalização do gosto’ não se sustenta em uma análise mais criteriosa. Diversos campos de estudo, como a sociologia e psicologia, são claros em afirmar que não há nada de “natural” no nosso gosto e em como nós o expressamos. Não nascemos gostando de algumas coisas e desgostando de outras, e se não há determinismo no gosto, ele só pode ser fruto de uma construção social, em um processo que leva em conta diversos aspectos ambientais, culturais e pessoais. E como um processo de construção social, o “gosto” é passível de mudanças, de desconstruções e de reconstruções.
A doutoranda em sociologia Amanda Costa Reis de Siqueira, citando Pierre Bourdieu em um artigo, diz que gosto não é natural, e que ele é, de fato, naturalizado, e serve como meio de distinção de uma classe em relação à outra.
Ou seja, o gosto não é algo inato, mas sim — e talvez um dos principais — símbolo de poder, de identificação com os semelhantes e exclusão dos que não pertencem ao mesmo grupo. É um código socialmente produzido capaz de identificar e diferenciar grupos.
Se nosso gosto é construído através de filtros impostos pela sociedade, é natural que ele reflita a intolerância da mesma. Vivemos em uma sociedade misógina, machista, homofóbica, transfóbica, racista, gordofóbica, capacitista e etarista, e esse ranço de preconceito impregna em nossas expressões de afeto e nos nossos alvos de afetividade.
Por conta disso, o “gosto médio” que sempre vemos reproduzido, especialmente dentro da comunidade gay, não quer se relacionar com pessoas afeminadas, gordos, negros, idosos, transexuais ou com deficiência. Mascarando este caráter intolerante de seu próprio afeto e dando a ele um aspecto permanente e imutável, muita gente prefere dizer que esse é “seu gosto’, que ‘não controla seu tesão’, ao invés de refletir sobre o tema.
Mas se estamos dizendo que o ‘gosto’, os motivos pelos quais alguém te atrai, é algo construído, porque não poderíamos desconstruir? Dá sim. Apesar de ser um processo penoso, quando encaramos nossos afetos e como expressão preconceito através deles, podemos desconstruí-lo, gradativamente. Não é fácil, mas é necessário.
E não tem ninguém aqui falando sobre “gostar mais de uma coisa” ou “gostar menos de outra”. Todo mundo acaba tendo suas preferências, e isso não é exatamente ruim. Talvez seja isso que torne uma pessoa diferente da outra.
O problema é quando suas preferências eliminam previamente todo um grupo social da possibilidade afetiva. O problema não reside em dizer que ‘prefere loiros’, mas dizer que ‘não fica com pessoas negras de jeito nenhum’. O problema não é dizer que ‘gosta de caras sarados’, mas dizer que tem ‘nojo de gordos’. O problema não contar que adora pinto, mas dizer que ‘todo homem tem de ter pinto’. Você não está expressando seu ‘gosto’, mas está reproduzindo opressão contra grupos minoritários e vulneráveis.
Não quer dizer que você tenha de sair ficando com um representante de cada um dos grupos minoritários citados neste texto (mesmo porque, isso se configura em fetichização, tornar o outro um objeto de fetiche para que você tenha prazer por conta de uma de suas características), mas que eliminar o caráter definitivo e imutável do ‘gosto’ é importante pra você e para as pessoas que te cercam.
Você deixa de conhecer e se relacionar com centenas de pessoas fantásticas durante a sua vida por conta de ideias pré-concebidas que tem em relação a elas, mesmo sem conhece-las.
Permita-se. E não seja um babaca.
ps: apesar de ainda ser um tema controverso, a orientação sexual não é citada neste texto por haver indícios em diversas áreas de estudo de que sua formação não é apenas cultural, mas que depende ainda de fatores biológicos e até mesmo genéticos, apesar de ainda ser uma área nebulosa para a ciência. Sendo assim, excluo a orientação sexual do rol de características passíveis de ‘gosto’.
William De Lucca
Jornalista por formação, ativista por falta de opção
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