Dosimetria do 8 de janeiro escancara a tentativa de redução de penas no Congresso

Entre cálculos jurídicos e acordos políticos, o Legislativo dá sinais claros de autoproteção e fragiliza a confiança na democracia.


Eu confesso. Sempre que ouço a palavra “dosimetria” sendo usada fora de uma sala de aula de Direito, meu radar apita. É quase um alarme sonoro, desses de desenho animado. Porque, no Brasil, os termos técnicos costumam aparecer justamente quando alguém quer fazer algo politicamente constrangedor com aparência de normalidade institucional.

A recente aprovação da dosimetria das penas do 8 de janeiro é exatamente isso. Um movimento ensaiado, com discurso sóbrio, ar professoral e aquela velha tentativa de vender rearranjo político como se fosse atualização de software. Nada pessoal, dizem. Apenas ajustes. Apenas números. Apenas técnica.

Só que não!

Estamos falando de pessoas e grupos que perderam uma eleição, colocaram em dúvida o sistema democrático, estimularam rupturas institucionais e flertaram abertamente com a ideia de que o voto popular era um detalhe dispensável. A democracia foi tratada como um bug, uma “falha no sistema”. A lei, como algo editável depois.


A cronologia do absurdo

O roteiro é simples, quase didático, como manual de instruções mal-intencionado.

Primeiro, perde-se a eleição. Acontece. Democracia é isso.

Depois, tenta-se deslegitimar o resultado. Questiona-se urna, sistema, juiz, mesário, cachorro do mesário e, se bobear, o relógio da seção eleitoral.

Em seguida, vêm as ações que ultrapassam o discurso. Atos antidemocráticos, ataques às instituições, tentativa clara de forçar um cenário de exceção.

Aí entra o Direito. Investigação. Julgamento. Condenação.

E quando a conta chega… muda-se a conta.

A dosimetria surge como passe de mágica. Não anula crimes, veja bem. Apenas “reorganiza” o cálculo das penas. Um corte aqui, um ajuste ali. Como quem pede desconto no caixa depois de comer o prato inteiro.


Quando a lei vira massinha de modelar

A lei deveria ser rígida no essencial e humana na aplicação. O problema é quando ela vira massinha de modelar nas mãos de quem legisla pensando em si mesmo ou nos seus.

Mudar regras penais depois da condenação é uma prática que, no mínimo, levanta sobrancelhas em qualquer democracia madura. Não por acaso, veículos como a BBC, a Reuters e a Associated Press destacaram o caráter controverso da medida e o impacto simbólico que ela tem sobre a confiança nas instituições.

O recado é péssimo. Não só para quem acredita na democracia, mas para qualquer cidadão comum que já pegou fila em fórum, que já teve processo arrastado por anos, que já sentiu o peso da lei sem direito a “ajuste fino”.


Dois pesos, duas penas e uma planilha no Excel

Existe uma pedagogia cruel em funcionamento aqui.

Para o cidadão comum, a lei é dura, lenta e impessoal.

Para determinados grupos políticos, ela é flexível, negociável e, se necessário, reprogramável.

É como se houvesse duas versões do Código Penal. Uma impressa em papel grosso, aplicada nas periferias. Outra em PDF editável, usada nos gabinetes.

A direita brasileira, historicamente, se especializou nisso. Discursos inflamados sobre ordem, lei e moral para fora. Bastidores cheios de emendas, ajustes e anistias para dentro.

Nunca falta rigor quando o assunto é protesto social, movimento popular ou pobreza organizada. Mas sempre sobra compreensão quando o problema nasce nos salões acarpetados do poder.


O presidente e o botão vermelho do veto

Lula vetará. Não lhe resta outra alternativa. Não por heroísmo, não por revanche, mas por higiene institucional. Por bom senso, afinal, a tentativa de golpe com plano de assassinato, era em cima dele.

O veto, aqui, não seria um gesto radical. Seria quase um aviso no elevador da democracia dizendo “não ultrapasse esta linha”. Porque se ultrapassar, o sistema inteiro começa a ranger.

Vetar essa dosimetria é dizer que o Legislativo não pode funcionar como seguro de vida penal para quem aposta contra a democracia.


O projeto que nunca chega

E aí entra o ponto que mais incomoda. A facilidade de ser de direita no Brasil.

É fácil porque não exige projeto de país. Não exige enfrentamento real da desigualdade. Não exige política pública complexa. Basta repetir palavras de efeito e defender privilégios com cara de virtude.

Cadê os projetos estruturais para educação básica?
Cadê a defesa consistente da cultura como política de Estado?
Cadê propostas sérias para combater fome, miséria e exclusão?

Quando aparecem, são genéricas. Quando detalhadas, são tímidas. Quando confrontadas com interesses econômicos, desaparecem.

Mas quando surge a chance de reduzir pena, anistiar aliados ou reescrever regra, a articulação é rápida, eficiente e silenciosa.


O humor involuntário da coisa toda

Existe algo de tragicômico nisso tudo. 

Gente que se diz defensora da lei precisando mudá-la para não sofrer as consequências da própria ilegalidade.

É como alguém que invade o campo gritando que respeita as regras do futebol, mas exige mudar o tamanho do gol depois de perder o jogo, para a próxima partida. (sim, sou péssimo com analogias futebolísticas, mas gosto de me arriscar)

Ou como o sujeito que estaciona em vaga de idoso e reclama da multa dizendo que o problema não é ele, é a placa.


Impacto real, desgaste silencioso

O maior dano não é jurídico. É simbólico.

Cada decisão como essa afasta um pouco mais o cidadão da política. Alimenta cinismo, descrença e aquela sensação de que tudo já está decidido antes do voto.

Democracias não morrem só com tanques. Morrem também com ajustes técnicos demais e vergonha institucional de menos.


A tentativa de reduzir penas após os atos antidemocráticos revela um Congresso mais preocupado em aliviar aliados do que em proteger a democracia

A dosimetria aprovada não é um detalhe jurídico. É um espelho.

Ela reflete uma política que se protege, uma direita que evita projeto coletivo e um sistema que insiste em tratar o povo como plateia.

É muito fácil ser de direita assim. Difícil é aceitar derrota, cumprir a lei e respeitar a democracia quando ela não está a serviço dos próprios interesses.

Enquanto isso, o Brasil segue tentando explicar, com termos técnicos e notas de rodapé, por que a regra nunca é igual para todos.

Sal

Jornalista, blogueiro, letrista, já fui cantor em uma banda de rock, fotógrafo, fã de música, quadrinhos e cinema...

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