Uma poesia chamada Ode Lúgubre II (o fim do disfarce)
Escrevi esse texto (desabafo) entre os dias 14 e 15 do ano de 1993. Na época com 22 anos, gostava de escrever minhas histórias e experiências desde os 14. Escrevia na primeira pessoa, olhando pro meu umbigo e sentia inveja daqueles compositores e poetas maravilhosos que conseguiam externar em palavras sobre o mundo, o país, o estado, a cidade, ou mesmo sobre a rua em que vivia. Eu tinha dificuldades. Mas, ante os fatos que ocorreram naquele ano, culminando com a chacina na Candelária, onde menores de rua foram exterminados enquanto dormiam, escrevi esse desabafo que, pela primeira vez, publico aqui na Internet.
I
Sinto o vento
Vendo o tempo passar
Sinto alegria com espera
Sorrisos com silêncio
Sons que só eu escuto!
(aqui fora ficamos chapados!)
II
Andava pensando num lugar melhor
Juntando os cacos pra não machucar
Engulo meu orgulho feroz
Quero o direito de sentir dor!
Seguindo o rumo certo pelo caminho errado
“Três passos pra frente e dois pra trás”
Nenhuma forma sutil de assassinato
Morro do meu pecado fugaz
Cato cada migalha de tudo
Quero o muito de qualquer coisa
Nada é bom demais!
III
Há um grande silêncio dentro de mim
Num apartamento alaranjado a saudade dói
Nada te satisfaz
Há o medo de amar
Há o medo do desconhecido
Não sei amar!
(desculpe-me, não sei me expressar!)
Estou ferido!
Há a minha cólera
Há feridas inflamadas no meu desespero
A bala cala a voz que não fala
Me alimento docemente da revolta que me faz crescer
(desculpe-me, não sei escrever!)
Em um mundo em que tudo sobe
A minha alegria está “down”
Mas tenho esperança
Nunca fiz mal
Vivo por um triz
Tento ser feliz
Aguardo o final
As pessoas temem a liberdade
(desculpe-me dizer a verdade!)
Os sonhos criam a realidade!
IV
Vivo o melhor pra enfim morrer o melhor
A morte não separa
A morte não põe fim
Nos transformamos em anjos!?
(escute! quem irá nos chamar para o doce sono profundo?)
V
Uma dama mundana mantém sua fera enjaulada
O cio ocioso
O frio
A luxúria
O brio
Os seus cabelos cor de sol
Aprisionados num lençol imundo
(os lençóis são prisões mortais!)
Sua pele macia e fria
Vem suave deslizando em brumas
O corpo magoado
Violado
Lesado
Os sonhos imaculados
Ela era jovem
Seus cabelos ruivos
Cada gesto seu meticulosamente planejado
VI
O arrependimento machuca
E é hora de não querer se machucar
Levado nessa correnteza
Não consigo mudar o rumo
Lavado nessa incerteza sumo
Travado na tua frieza fumo
Você baixou a arma
Mas não a tirou da mão
Meu amor partiu
Meu coração
VII
(os sonhos estão fora de nossa lógica, neles, as verdades inteligentes se revelam!)
Se faz homem a criança perdida em sonhos
Homens de fardinhas azuis matam pessoas durante seus sonos
A polícia mata crianças
e sente a delícia de destruir sonhos
(os sonhos estão fora!)
VIII
No país do futebol
Perde-se a bola
Cheira-se cola
Sequestram pessoas
Pede-se esmola
Aqui levanta-se cedo
E luta-se a favor de inúteis padrões
Aqui as meninas em prantos ostentam enormes barrigas
Aqui estupra-se crianças
Houve uma carnificina
Índios são assassinados
(aqui mata-se índios desde o descobrimento do Brasil!)
Existe um vírus que espalharam por aí
(desculpe-me, mas se morre!)
De AIDS, tiro e fome
De dor, de amor e desgosto
Do coração
De desespero
De solidão!
Espere …
Nem todos morrem
(a morte e a vida estão no poder da língua!)
A morte não põe fim
(a morte é uma porta que se abre!)
Nos transformamos em anjos!?
IX
“Ó Senhor
Conceda-nos tua misericórdia
Segure em nossas mãos pra não termos medo do desconhecido
O coração do entendido adquire o conhecimento
O ouvido dos sábios busca a sabedoria
Te louvarei Senhor de todo o meu coração
Livrai minha alma dos lábios mentirosos e da língua enganadora
Ouça minha súplica Senhor!”
X
Procuramos o que já nos encontrou
As rotas crianças
As míseras mulheres
A pantera negra de língua ferina na noite
Entro na roda viva que é esta cidade …
Luzes
Lustres
Embustes
Bustos
Sustos
Custos
Bares
Lares
Pilares
Ruas
Nuas
Cruas
Ventos solares avesso ao contrário …
Avenidas
Feridas
Perdidas
Mordidas
Trânsito
Tráfego
Tráfico
Trágico
Público
Único
Flácido
Mágico
Adrenalina, morte em cada esquina …
Chacinas
Meninas perdidas
Violadas
Meninos
Garotos mortos
Assassinados
Mal amados
Sorrisos precisos
Cheiros
Cola de sapateiro
Cárie
Cólera
Não há vagas nas escolas!
A praia lota
A saia amarrota
Não há rota!
Há peitos e bundas
Há pelos
Areia imunda
Abunda!
Sol
Prol
Lá
Si
Dó
Lábios
Bocas
Nó
Há coxas
Há pele
É verão
Há sexo
Há desejo
Há tesão
Perplexo anseio paixão …
Sequestros
Espectros
Introspectos
Estupro
Trilho
Gatilho
O sanatório
Tão notório purgatório
A sorte em cada esquina
A morte coloca-nos asas
Há brasas!
O trampo
O bêbado
A equilibrista
A alegria falsa
A valsa
O frevo
O Rio
Não rio
Janeiro
A meretriz
O viciado
O jornaleiro
No meio de todas essas mentiras
Nós somos verdadeiros
Cego sob as luzes de néon
O som
A cor
O torpor
Cada paralelepípedo
Um límpido objeto
XI
Sonharam sambas
Sambaram granas
Amaram vidas
Cheiraram sonhos
Flagraram tontos
Chiaram o início
Sambaram propícios
Sangraram solícitos
Rolaram ilícitos
Passaram vícios
Passaram sambas
Rolaram granas
Sangraram vidas
Sambaram sonhos
Chiaram tontos
Flagraram vícios
Cheiraram ilícitos
Amaram solícitos
Sambaram propícios
Sonharam o início
XII
Estufo a veia de vida vazia
Pelas alcovas
Pelas tocas
Pelo “Baixo”
Me encaixo entre tuas pernas
As meretrizes infelizes
Desvairadas
De olhos vazados pela ilusão
Desvalida de todos os sentidos
Os sinos
Os hinos
A ilusão
O híbrido juízo
Nunca terá decência
(ainda há inocência!)
Há razão!
XIII
O príncipe gargalhou
Amou
Sofreu
Sorriu
Chorou
Descambou
Soluçou
Secou a penitência
Destruiu sua realeza
Se afogou em Veneza
Agonizou na incerteza
Não achou sua princesa
Toquei na ferida
(teus olhos profundos se encheram de lucidez)
A morte nos sorri
O grito é abafado
(acabou o disfarce!)
Há outras histórias …
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