Os males do capitalismo: uma crônica “de domingo”, café ralo e boleto caro


Quando o sistema senta à mesa sem ser convidado

Domingo costuma ser esse dia estranho em que o tempo anda mais devagar, mas a cabeça insiste em correr. A cidade acorda meio bocejando, o café sai mais fraco, o pão amanhecido vira tradição e a gente tenta, em vão, fingir que a semana não está logo ali, aquecendo os motores. Foi num desses domingos que o capitalismo resolveu puxar uma cadeira e sentar comigo à mesa. Não pediu licença. Nunca pede.

Ele veio discreto, travestido de pensamentos soltos. A fatura do cartão. A mensagem automática do banco oferecendo crédito “sob medida”. A propaganda prometendo felicidade em doze vezes sem juros. E, de repente, pronto: o tema estava ali, espalhado pela toalha como migalha de pão. Os males do capitalismo não costumam chegar com sirene. Eles chegam de mansinho, educados, dizendo que é assim mesmo.


A promessa de ascensão e a escada escorregadia

Desde cedo, esse sistema conta uma história sedutora. Trabalhe, produza, renda, cresça. Se der certo, o mérito é seu. Se der errado, a culpa também. O detalhe inconveniente é que a largada não é a mesma pra todo mundo. Alguns já nascem no meio da pista, outros ainda estão procurando o tênis.

Dados do World Inequality Report ajudam a tirar a poesia dessa narrativa. Hoje, cerca de 10% da população mundial concentra mais de 70% da riqueza, enquanto metade da humanidade divide migalhas que não chegam a 2%. Isso não é falha de caráter individual. É estrutura. É projeto.

No Brasil, o cenário segue o mesmo roteiro, com sotaque local. Segundo o IBGE, os 10% mais ricos concentram algo em torno de 40% da renda, enquanto milhões sobrevivem equilibrando contas como quem faz malabarismo no sinal. A meritocracia, nesse caso, funciona mais como consolo moral do que como realidade prática.


O culto à produtividade e o cansaço como medalha

Em algum ponto da história recente, trabalhar virou mais do que necessidade. Virou identidade. Quem descansa demais é visto com desconfiança. Quem diz que está cansado recebe um conselho padrão: organiza melhor o tempo, faz um curso, acorda mais cedo.

O capitalismo transformou a produtividade em religião. Há dogmas, rituais e culpa. Muita culpa. A Organização Mundial da Saúde reconheceu o burnout como fenômeno ligado ao trabalho, o que já diz bastante. E pesquisas da Gallup mostram que mais da metade dos trabalhadores no mundo se sente emocionalmente desconectada do que faz. Ainda assim, seguimos fingindo normalidade, como se viver exausto fosse sinal de virtude.

O problema é que o corpo cobra. A mente também. E o sistema, curioso, lucra até com isso. Remédio, terapia, aplicativo de meditação, palestra motivacional. O adoecimento vira mais um nicho de mercado.


Consumo: o afago que dura pouco

Quando o cansaço aperta e o vazio aparece, o capitalismo oferece colo. Mas é um colo pago. Consumir vira anestesia social. Não resolve, mas distrai. É o alívio temporário de uma compra por impulso, o prazer rápido de algo novo que logo vira comum.

Segundo dados da ONU, se toda a população mundial consumisse no mesmo ritmo dos países mais ricos, seriam necessários quase três planetas Terra para sustentar o modelo. A conta não fecha. Nunca fechou. Mesmo assim, seguimos acelerando, como se ignorar o limite fosse uma forma de driblá-lo.

A lógica é simples e perversa. Produz-se mais do que se precisa, consome-se mais do que se vive, descarta-se mais do que se pensa. E, quando o impacto ambiental bate à porta, a surpresa é geral, como se o problema tivesse surgido do nada.


A ilusão da escolha

Um dos truques mais eficientes do capitalismo é vender a ideia de liberdade total. O consumidor escolhe, dizem. Mas escolhe dentro de quê? Entre marcas que pertencem ao mesmo grupo? Entre pagar o aluguel ou a conta de luz? Entre trabalhar doente ou faltar e correr o risco da demissão?

A liberdade oferecida costuma vir com asterisco. Parece escolha, mas é sobrevivência. É o famoso “dá seu jeito”, embalado como autonomia. A faca está ali, discreta, encostada no pescoço, enquanto o discurso fala em livre mercado.


Cultura sob o cronômetro

Talvez um dos danos mais silenciosos do capitalismo seja o simbólico. Tudo vira produto. Tudo precisa performar. A cultura, que deveria ser espaço de reflexão, encontro e estranhamento, passa a ser medida por métricas.

A música precisa caber no algoritmo. O texto precisa viralizar. O jornalismo precisa disputar atenção com dancinha. Não é uma crítica moral, é constatação. Quando o valor é medido apenas pelo retorno financeiro, muita coisa essencial fica pelo caminho.

O tempo também vira mercadoria. Tempo pra ler, ouvir um disco inteiro, conversar sem olhar o relógio. Tudo isso vai ficando raro, quase subversivo. Como se viver devagar fosse um luxo indevido.


Não se trata de negar avanços

É importante dizer. O capitalismo produziu avanços reais. Tecnologia, aumento da expectativa de vida, conforto material. Ignorar isso seria desonesto. A questão não é demonizar, é ponderar. É perguntar quem se beneficia e quem fica com o custo.

Crescimento econômico, por si só, não garante bem-estar. Um sistema que prospera em meio à desigualdade, à exaustão e à destruição ambiental precisa, no mínimo, ser questionado. Questionar não é destruir. É tentar melhorar.


Conclusão: domingo acaba, a reflexão não

No fim da manhã, o café esfria, o jornal dobra, o domingo começa a escorrer pelos dedos. O capitalismo continua ali, firme, esperando a segunda-feira chegar. Essa crônica não pretende oferecer solução pronta. Não cabe em manual.

Ela é só um incômodo em forma de texto. Um convite a olhar o cotidiano com mais desconfiança e menos resignação. Porque sistema nenhum deveria valer mais do que gente. Nenhuma lógica de mercado deveria justificar vidas inteiras gastas em sobrevivência.

Se o capitalismo fosse uma trilha sonora, talvez o problema não fosse a música, mas o volume. Está alto demais. Quem sabe abaixar um pouco o som, ouvir outras vozes e lembrar que viver não é apenas produzir, consumir e repetir.


Impacto e legado

Os males do capitalismo não são teoria distante. Eles atravessam o dia a dia, moldam relações, adoecem corpos, empobrecem o tempo e limitam futuros. Entender essas engrenagens é um passo essencial para não aceitá-las como destino.


Sal

Jornalista, blogueiro, letrista, já fui cantor em uma banda de rock, fotógrafo, fã de música, quadrinhos e cinema...

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