O Trem das Cores de Mú Carvalho para Caetano Veloso

Talentoso, querido e com uma trajetória de respeito na música brasileira, o tecladista da Cor do Som, Mú Carvalho presta uma linda homenagem ao ídolo Caetano Veloso, que celebra 80 anos em 2022.

Caê está presente na obra de Mú desde os anos 1970, nos trabalhos da Cor do Som, quando aquele presenteou o grupo com duas canções inéditas, “Beleza pura” (lançada no álbum “Frutificar”, em 1979) e “Menino Deus” (em “Magia tropical”, de 1982).

Mú carrega essa vontade de passear pela obra de Caetano há tempos. Pois, além dos presentes inéditos para a banda, a paixão de Mú pelo baiano vem desde a infância.  Finalmente, gravado durante 2021, e previsto para ser lançado em dezembro, “Trem das cores” chega ao mercado quase dois meses depois para concretizar a admiração pela obra de Caetano. 

Bom, mas como nada é por acaso, o “pequeno” atraso no novo disco solo e instrumental de Mú Carvalho coincidiu de abrir as comemorações das 8 décadas que o compositor baiano completará em 7 de agosto.

Eu perguntei ao Mú sobre como ele estava se sentindo ante o trabalho concluído. Ele respondeu que está muito feliz com o resultado e mais. “Eu sempre fui muito fã, não só das letras, mas das melodias também. Além de um poeta gigante, sempre me impressionou a sofisticação das melodias das músicas do Caetano, desde o início da carreira dele. É daqueles compositores de verdade. Para mim, tem uma diferença da pessoa que estuda composição e a pessoa que nasce compositor. Caetano nasceu compositor e eu humildemente me coloco nessa categoria também”, revela.

Mú conta ainda que foi no meio da pandemia, quando ficou isolado em casa durante meses, que ele resolveu trabalhar seu piano, estudar músicas que sempre teve vontade de tocar e naturalmente rolou umas canções do Caetano, as quais começou a tocar de forma instrumental. “Eu cheguei a postar uns vídeos em que eu tocava Terra, Trem das Cores, Trilhos Urbanos. Eu vi que aquilo estava tão legal e que eu já estava com o disco na mão. daí foi só selecionar as 10 com a característica de que soaria bem no instrumental, sem as letras”, revela sobre o processo de criação.

Caetano também sempre foi um admirador do grupo no qual Mú ficou conhecido. Ele trabalhou com a Cor do Som em duas trilhas sonoras,  “A Dama do Lotação” (1978), um dos maiores blockbusters do cinema brasileiro, filme do qual saiu uma das músicas agora retrabalhada por Mú, “Pecado original”; e “Nas Onda do Surf”, documentário, também lançado em 1978, sobre o esporte que o Brasil passou a ser campeão no século 21.

Para o registro de Trem das Cores, Mú (arranjo e teclados) contou com os mesmos músicos que já haviam participado de seu álbum anterior (“Alegrias de quintal”, lançado em julho de 2021. Tem uma live sensacional no canal Pitadas do Sal, no YouTube, onde Mú conta mais sobre esse trabalho).

Os músicos são: Lancaster Lopes (baixo), Júlio Raposo (guitarra) e Pedro Mamede (bateria). Esse quarteto bem entrosado contou ainda com o percussionista Sidinho Moreira em quatro temas e o violoncelista Jaques Morelenbaum em três. Enquanto na faixa que dá partida à jornada, “Alegria, alegria”, um naipe de sopros formado por Marlon Sette (trombone), Diogo Gomes (trompete) e Jorge Continentino (sax) pinta com tons mais fortes uma das canções fundadoras da Tropicália.

O barato desse percurso instrumental pela obra de Caetano Veloso, é que Mú consegue dar novas cores para as dez canções selecionadas, lançadas originalmente entre 1967 (“Coração vagabundo”) e 1981 (“Trem da cores”). 

“O álbum está aí, em todas as plataformas de streaming e deu para fazer aquela coisa que eu amo, que é trabalhar com timbres e eu viajei. Tem um lado até meio progressivo no álbum. Ouça a introdução de Alegria, Alegria, Terra… e eu usei todos aqueles instrumentos vintages reais, nada de plugins, usei Minimoog, órgão Hammond com caixa Leslie, Piano Wurlitzer elétrico, Clavinet Hohner, enfim, deu para dar uma curtida legal. Eu estou muito feliz com o resultado”.

Após editar e montar o álbum, outra coincidência foi percebida, as músicas estavam em ordem alfabética, como podemos conferir no faixa a faixa abaixo. Talento, muito trabalho e o acaso conspirando a favor.              

                        Ouça o álbum aqui, na sua plataforma preferida!

Faixa a Faixa – por  Antônio Carlos Miguel*

“Alegria, Alegria” –  Em tempos tão sombrios e pesados, abrir um disco com essa canção (do primeiro álbum solo de Caetano, em 1968) é uma declaração de princípios. Sopro de vida, aposta na arte e na busca de um mundo melhor. Antes dos riffs de guitarra que são marca da gravação original, Mú criou breve introdução climática, à la Pink Floyd (até no timbre da guitarra de Júlio Raposo). Para o refrão, o grupo de base é reforçado por um naipe de sopros – Marlon Sette (trombone), Diogo Gomes (trompete) e Jorge Continentino (sax) -, e, no decorrer do tema, há lugar para precisos comentários de Moog (Mú) e trombone. Belo começo para o que vem a seguir.

“Cajuína” – Lançada em 1979, no álbum “Cinema transcendental”, é inspirada em uma visita que Caetano fez ao pai de Torquato Neto, em Teresina. O poeta tropicalista, que já tinha partido há mais de duas décadas quando aconteceu esse encontro, é homenageado de forma lírica, através de detalhes sutis, sem ser mencionado explicitamente na letra. O arranjo imprimiu uma levada reggae e dub para a toada, com um sinuoso baixo (Lancaster Lopes) fazendo a cama perfeita para o órgão de Mú, que conduz e comenta a arrebatadora melodia.

“Coração Vagabundo” – Um dos primeiros clássicos do compositor, lançado no álbum “Domingo”, que ele dividiu com Gal Costa em 1967, é música que não se cansa de encantar corações e mentes, e vem sendo regravada periodicamente por meio mundo nas últimas cinco décadas e meia. Merecidamente, como prova a versão de Mú, que introduz a melodia no teclado e depois divide a bola com a voz do violoncelo de Jaques Morelenbaum.

“Leãozinho” –  Outro clássico instantâneo, desde que veio ao mundo no álbum “Bicho”, em 1977. Agora, o som de flautas na introdução criada por Mú tem um quê de Beatles (remete a “Strawberry Fields forever”  e “Fool on the hill”). Não por acaso, ele pilota o mesmo Mellotron (um teclado que emula sons de cordas e sopros) usado em 1967 pelo quarteto de Liverpool. Em seguida, o andamento é de reggae: baixo e bateria típicos do som jamaicano são os parceiros do delicioso órgão que apresenta a melodia. Também não por acaso, essa faixa conta com a participação do mano Dadi Carvalho (guitarra). Como se sabe, o também baixista, que na época trocava os Novos Baianos por A Cor do Som, é o muso inspirador de “Leãozinho”.

“Oração ao Tempo” – Mais uma lançada em “Cinema transcendental”, nessa recriação o andamento é ralentado. Tempo mais estendido, que também se percebe no acordeão tocado por Mú, o fole do instrumento se alongando e se fechando como em respiração pausada. A música, quase incidental, parece passar em nossa frente, visível e palpável, o tempo representado, traduzido em sons e pausas. Mantra instrumental.

“Pecado Original” – É a mais ligada à história de Mú entre as dez selecionadas nesse tributo. Ela foi composta por Caetano para “A Dama do Lotação” (direção de Neville de Almeida a partir da obra de Nelson Rodrigues e estrelado por Sônia Braga), filme cuja trilha sonora foi gravada pela  Cor do Som. Mú introduz o tema no piano acústico e também colore a melodia com teclados, enquanto o quarteto base que gravou todo o disco ganha o reforço da percussão de Sidinho Moreira, realçando o molho salseiro e sensual da composição.

“Tempo de Estio” Lançada no álbum “Muito” (1978), aqui o tempo musical é mais acelerado, pulsante, pop-rock poderoso graças a mãos (e pés) do quarteto básico do disco. Bem acompanhado e estimulado, Mú esbanja seus dotes no Moog, no órgão e no vocoder (cantando as “meninas” do refrão).

“Terra” – Mais uma que vem de “Muito” (1978). A evocativa ode ao planeta, pela primeira vez visto por inteiro, fotografado do espaço, recebe aqui um tratamento plástico. Como dois pintores, Mú (acordeão e piano) e Morelenbaum (violoncelo) dão leves pinceladas na tela-melodia e vão revelando o quadro. A introdução é um aboio, ecos nordestinos mas que também remetem ao Oriente Médio, Terra rodando e nos levando sempre.

“Trem das cores” – Para quem estreou na música com A Cor do Som  e também faz artes plásticas, a conexão com essa canção é imediata.  Daí também ter sido escolhida por Mú para dar nome ao álbum. Apresentada ao mundo no disco “Cores, nomes” (1981), “Trem das cores” viaja agora com um sexteto a bordo, o quarteto básico, mais o violoncelo de Morelenbaum e a percussão de Sidinho.

“Trilhos Urbanos” – A terceira pinçada do álbum “Cinema transcendental” é outra composição movida por memórias de Caetano. Viagem no tempo, agora nos trilhos de um bonde, de volta à Santo Amaro natal. Sons, cores, gostos, luzes, associações e referências misturando-se no tal cinema transcendental na mente de cada ouvinte.

* Jornalista especializado em música há 40 anos, também é autor de livros sobre MPB, curador de projetos musicais e membro votante do Grammy Latino.

Sal

Jornalista, blogueiro, letrista, já fui cantor em uma banda de rock, fotógrafo, fã de música, quadrinhos e cinema...

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2 Resultados

  1. A Cor do Som Fã Clube disse:

    Adoramos tudo, Sal! Cada detalhe de cada uma das músicas de TREM DAS CORES, de Mú Carvalho.
    Percebemos musicalmente as influências, mas tudo com o jeitinho próprio do Mú! Belíssimo trabalho!👏👏👏👏🎼🎼🎼🎸🎸

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