Here, There and Everywhere – Minha Vida Gravando os Beatles

Livro narra os bastidores das gravações mais lendárias dos Beatles

Lançado nos EUA em 2006 pelo engenheiro de som dos estúdios EMI, Geoff Emerick, com a ajuda do jornalista Howard MasseyHere, There and Everywhere – Minha Vida Gravando os Beatles narra a trajetória de Geoff, desde sua adolescência, quando conseguiu a vaga de estagiário de assistente de engenharia de som no lendário estúdio Abbey Road até os dias atuais. Porém, como o próprio título do livro entrega, é a sua convivência nos estúdios com os quatro rapazes de Liverpool, desde sua primeira gravação, em 1962, até o último álbum da banda, em 1969, a cereja do bolo e a razão de ser das memórias de Geoff no livro.

Aqui no Brasil o livro chegou apenas no final de 2013, através da editora Novo Século, o livro é mais voltado aos fãs dos Beatles, ou para aqueles interessados em como as gravações funcionavam 50 anos atrás. De forma simples, mas não menos interessante, Geoff conta detalhes técnicos e truques usados nos estúdios de gravação para dar forma as ideias pouco convencionais de John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr. Sempre sob o olhar atento do produtor George Martin, o leitor entra nas estruturas do estúdio e viaja no tempo em que clássicos álbuns como Revolver e Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band foram registrados em míseros quatro canais de gravação.

Geoff em algum momento dos anos 2000

Mesmo na correria do dia a dia, eu consegui a proeza de ler o livro em apenas uma semana, tamanha é a sede de saber mais e mais sobre as gravações contadas de maneira atraente pelo autor. Confesso que, após concluir a leitura, eu fui ouvir várias das músicas gravadas por Geoff, com fones de ouvido, para prestar atenção nos detalhes, nas minúcias, nos truques e “erros” abordados de forma apaixonada pelo engenheiro de som. Faça a experiência. Confesso que você jamais ouvirá A Day In The Life ou Tomorrow Never Knows, da mesma maneira que antes.

Geoff, por amar tanto a música é capaz de enxergar cores quando a ouve, por isso, diz que pinta quadros com as canções. Por seu amor e dedicação sabemos como um pedido inusitado de Lennon como, “faça minha voz soar como o Dalai Lama cantando no alto de uma montanha”, para Tomorrow Never Knows, tomou forma em 1966, na gravação do disco Revolver, usando os parcos recursos que mesmo um grandioso estúdio, como o da EMI (que só viria a ser chamado de Abbey Road após o lançamento do disco dos Beatles com o mesmo nome), oferecia na época.

Ringo Starr entrega ao engenheiro de som, Geoff Emerick, o Grammy de “Melhor Engenharia de Gravação” para Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band, enquanto o produtor George Martin apenas observa (Mar/1968)

Além de narrar os bastidores das gravações de vários clássicos dos Beatles, Geoff também nos brinda com particularidades sobre as personalidades de cada um dos integrantes no estúdio, durante as várias fases da carreira do grupo. O engenheiro de som, cargo que conquistou aos 19 anos, às vésperas da gravação de Revolver, nos mostra desde a época em que os Beatles eram vistos com desconfiança pelos funcionários da EMI em 1962, os dias de glória e inovações nos estúdios – quando os quatro músicos resolvem parar de excursionar e se dedicar apenas às gravações a partir de Revolver – a fase “pesada” do registro do Álbum Branco, até a despedida com Abbey Road, quando nunca mais os quatro se reuniram para qualquer outra atividade musical.

Muito já se escreveu sobre os Beatles, alguns livros são muito bons, outros apenas caça níqueis. Minha avaliação sobre se vale a pena ler Here, There and Everywhere – Minha Vida Gravando os Beatles é, SIM. Geoff nasceu para ser engenheiro de som, mais que isso, ele nasceu para gravar os Beatles. Por ser testemunha ocular da história musical dos Fab Four, Geoff nos apresenta um relato diferenciado, uma nova visão da banda, ao contrário do maciçamente abordado em tantas outras que existem por aí.Parabéns para editora Novo Século em trazer este livro para o Brasil. Antes tarde do que nunca. Boa leitura! 😉

Bônus – Uma entrevista feita com Geoff Emmerick, para uma matéria do jornal argentino La Nacion, sobre o lançamento do livro, em 2012, na Argentina (sim, lá saiu um ano antes que no Brasil. Nossos hermanos são mais roqueiros que nós). Traduzido por mim. 😉

Por que você publicou o livro tantos anos após a separação dos Beatles?
Geoff – Há muito tempo eu imaginava sobre como escrever esse livro, uma coletânea pessoal do que eu tinha vivido, mas não sabia como escrever.  como enfrentá-lo. Eu não queria escrever de uma forma que não desse certo. Eu já conhecia [o jornalista] Howard Massey por uma série de entrevistas que ele fez comigo, incluindo uma para a  revista EQ, sobre meu trabalho com Philip Glass. Eu gostei do estilo dele e decidimos fazer o livro juntos. No total foram cinco anos na elaboração do livro.

O que os Beatles significa para você?
Geoff – Muitas coisas . Assim como eu ajudei a moldar o som deles, eles também moldaram a meu trabalho. A primeira vez que eu os vi foi em 1962, quando estavam começando e eu também. No ano seguinte eles se tornaram a maior banda da Inglaterra. Eles tinham algo especial. Uma atitude que os fez se diferenciar entre os outros grupos. Na música eles mudaram o modo de gravar uma canção. Isso, juntamente com as estruturas de suas canções, foi uma revolução musical. Só agora as pessoas percebem a importância de Sgt. Pepper ‘s, um álbum em que os Beatles extrapolaram os limites de tudo, mas na época eu era um garoto, para mim, era algo divertido e soava bem, é claro.

Qual é a primeira lembrança que você tem deles?
Geoff – Eu me lembro da primeira reunião em que eu os vi, quando George Martin foi oficializado o produtor do grupo. No final da gravação ele disse: “Eu não sei se alguém quer dizer alguma coisa.” E George Harrison respondeu: “Sim , eu não gostei da sua gravata.” Isso marcou muito como era a banda.

O título inglês de seu livro é Here, There and Everywhere, uma de suas canções favoritas do grupo. Quais outras canções marcaram você?
Geoff – Tenho na lembrança todas elas na verdade, mas posso te citar “For No One”, “Strawberry Fields”, “All You Need Is Love” e, claro, “A Day in the Life”, por tudo que essa canção envolveu (fragmentos escritos por John e Paul separado, orquestra adicional, o soar incidental de um despertador, etc . ) e que, assim que John começou a cantar, senti calafrios .

No livro você tambem conta que que ficou surpreso ao descobrir um John capaz de compor baladas, como “Across the Universe” (1968)…
Geoff – Essa é uma das melodias mais mágicas de Lennon. Ele era um gênio que viveu uma infância difícil e podia ser hostil, mas, por outro lado, tinha uma voz muito doce. Como se a voz não não fosse da mesma pessoa, às vezes , sabe? Eu acredito que ele fazia canções como essa pensando em seu passado.

Alguma vez você já se sentiu intimidado pelos Beatles ?
Geoff – Não. Muitas sessões nós fizemos no Estúdio 2 , em que as salas de gravação e controle eram separadas por uma escada. Isso formou uma espécie de barreira natural. Nós ficávamos em cima e eles na parte de baixo, gravando. No começo até havia uma espécie de atrito. Uma questão de postura, pois todas as bandas de destaque eram de Londres, os Beatles são de Liverpool e tinham uma pose de classe trabalhadora do norte e nós éramos da classe média londrina. Felizmente, depois essa barreira se rompeu.

Você também gravou Band on The Run (1973), com Paul McCartney, se tornaram amigos, ainda mantém contato com ele?
Geoff – Sim, eu supervisionei a apresentação que ele encerrou a última edição do Grammy. Eu participei também de um par de sessões informais para o seu novo álbum de jazz (Kisses On The Botton) .

O que você faz atualmente?
Geoff – Eu estou trabalhando com Tony Kaye (diretor do American History X), na trilha sonora do filme “Attachment”   estrelado por Sharon Stone. Eu também trabalho com uma banda lendária, America, e com Art Garfunkel .

E sinto o mesmo tipo de prazer de quando trabalhava com os Beatles?
Geoff – Sim, porque eu admiro muito esses artistas…

Você recebeu algum tipo de comentário de Paul ou Ringo sobre o seu livro?
Geoff – Eu não quis perguntar nada para eles, antes ou depois, porque era o meu projeto pessoal e meus sentimentos, eu não queria ser influenciado. Eu me sinto muito sortudo por ter estado no lugar certo na hora certa. Eu era um jovem que queria fazer música…

Você diz que ninguém imaginava que os Beatles iriam se separar após Abbey Road (1969).
– Não, ainda que eles se sentissem desconfortáveis quando estavam juntos, e as coisas tinham sido ruins na gravação do Álbum Branco, eu sabia que tinha piorado em Let It Be (álbum que Geoff não participou ). No Abbey Road, como eu conto no livro, parecia que os Beatles estavam voltando ao início. Eles tinham seu próprio estúdio, na Apple, para gravar os discos que quisessem… Quando eles se separaram, ninguém queria acreditar naquilo, muito menos seus fãs.

A gravação do Álbum Branco foi ruim?
Sim, pelo menos para mim. Eles haviam retornado da Índia e se convertido em outras pessoas. Pessoas com raiva e cansadas de estarem juntas. Havia muita “agressividade” no ar, entre eles.

E aí apareceu Yoko Ono… É chocante quando você conta que ela acompanhava Lennon até na hora dele ir ao banheiro e ficava esperando por ele do lado de fora, sentada no chão.
Geoff – Sim. Outra vez eu estava com George Martin e meu assistente na sala de gravação, quando John entramos e a deixou lá. Ela não disse uma palavra, na verdade ela nunca dizia nada. Só abria a boca para falar com  John. Depois ela voltou a sentar ao lado de Lennon no estúdio, e não voltou a sair de lá.

Você acha que Yoko foi mal interpretada pelos fãs ?
Geoff – Em certo sentido, sim. Instalar-se com uma cama no estúdio durante a gravação de Abbey Road foi desconfortável para todos. Todo mundo tende colocar a culpa nela pela separação dos Beatles, mas ela era apenas uma pequena parte. Havia muitos outros problemas no campo dos negócios. John, influenciado por Yoko, queria ir em uma direção mais artística, Paul queria continuar fazendo pop rock e George queria fazer o seu próprio caminho.

Você alguma vez conversou com McCartney sobre esse período difícil no grupo?
Geoff – Não, falamos apenas dos bons momentos. Eu acho que no final é só isso que fica.

John, Paul, George e Ringo, por Geogg Emerick

Desde o dia em que nos conhecemos, Paul me pareceu uma pessoa calorosa e autêntica. Ele sabia o que queria e, o mais importante, sabia como agir diplomaticamente, sem parecer insolente. E nesse sentido, parecia realmente ser o líder dos Beatles, ao invés de John, como normalmente se imagina. Estava claro que ele era o músico “puro” dos Beatles, tocava bem diferentes instrumentos e quando ele não estava tocando, estava falando sobre música.

John era o mais complexo dos quatro. Os outros três Beatles eram personalidades estáveis e consistentes, e não compartilhavam sua curiosidade intelectual. Quando John estava de bom humor (que era a maior parte do tempo ), podia ser doce, charmoso, carinhoso e incrivelmente engraçado, mas tinha um humor inconstante. De uma hora para outra ele podia ser mordaz e desagradável. Me parecia muito inseguro. Eu não sei o que poderia ser a causa dessa insegurança, a não ser a rivalidade na hora de compor canções, que mantinha com Paul. De certo modo John era um pouco ingênuo. Tudo o que ele fazia tinha um aspecto ativista no sentido filosófico, ele tinha que fazer coisas para apoiar ou ir contra outra coisa. Você nunca podia ter com John um bate-papo descontraído. Ele era muito polêmico, mas também era muito autêntico.

George Harrison sempre foi um mistério. Cruel e sem senso de humor, ele se queixava muito e sempre me pareceu cauteloso com aqueles que não pertenciam ao círculo íntimo dos Beatles. Foi um solitário, um estranho a sua própria maneira. Ringo e ele pareciam ter desenvolvido uma forte amizade. Muitas vezes eu o via junto a Lennon, trabalhando juntos em arranjos de guitarra, mas eu nunca vi uma interação positiva entre Paul e George. Paul fazia vistas grossas nas muitas vezes em que o pobre George lutou sem sucesso para realizar um solo ou alguma outra parte de uma canção. Provavelmente Paul achava que ele poderia ter tocado um arranjo mais rápido e melhor que George. Mas reconheço que Harrison enfrentou uma batalha perdida contra o enorme talento de John e Paul.

Ringo era calado como um rato. Podia ser espirituoso e encantador, mas também tinha um humor sarcástico. Usava o sarcasmo para encobrir sua insegurança. Mas justamente por falar pouco que ele, ao expressar uma crítica musical, era mais ouvido. Curiosamente Ringo ficava apavorado quando tinha que fazer um arranjo na bateria (e também quando se tinha que cantar). Esta falta de confiança tornou-se parte do seu estilo, mas há outra explicação para a qualidade incomum em sua maneira de conduzir a bateria. Ele não tocava rápido e muitas vezes entrava ligeiramente atrasado no tempo da música. Não porque ele não era bom com o tempo das músicas, pois ele era, mas sim porque não era um homem fisicamente forte. Ele levava muito tempo para mexer os baixos para cima e para baixo de modo que seu toque na bateria parece tão relaxado.

Entrevista feita por: Francia Fernández
Fonte: La Nacion
Tradução: Sal
Texto original

Sal

Jornalista, blogueiro, letrista, já fui cantor em uma banda de rock, fotógrafo, fã de música, quadrinhos e cinema...

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